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 Minha tristeza é falsa; basta uma palavra pra se desfazer em risada.


Aline Lima



Filha

 Meu lugar era um quartinho no fundo da casa. Não tínhamos banheiro. Pela manhã, ela pegava o penico embaixo da cama, e despejava no vaso que ficava próximo à cozinha. Todas as manhãs, o penico estava lá mostrando o nosso lugar.  Eu não achava ruim, até me acostumei  a espaços pequenos, toda comunicação era feita na porta do quartinho. Qualquer pessoa colocava a cabeça na porta e falava o que queria. A entrada era restrita , mas não havia placa de proibido entrar pendurada, mas uma barreira simbólica que só percebi anos depois.

De vez em quando eu ia pra restaurantes caros, comia ate MacDonalds, mas só não era melhor que os passeios à praia aos domingos.  Minha mãe levava o balde e eu ficava fazendo conchinha de areia pra esquecer meu medo do mar. Tinha também os passeios pro trabalho dela, em que eu ficava rodando na cadeira giratória e fantasiava que eu era alguma empresária importante que só dava ordens. 

Enquanto isso minha mãe estava em casa. O quartinho era só pra dormir e trocar de roupa. Devia estar na cozinha lavando louça ou limpando os banheiros. Ela fazia tudo sozinha: Colocava as crianças pra escola, ajeitava o almoço, fazia compras, lavava roupa e todo tipo de sujeira.  Eu fui crescendo achando que minha mãe era babá porque ela que colocava as mochilas nas costas e segurava os meninos pelas mãos pra levar à escola. 

Uma vez recebi na escola um gesso com uma foto dela no dia das mães, fiquei sem entender porque trocaram de mãe e colocaram a babá. Aquele povo da escola era mesmo doido, mas por que eu dormia no quarto fora se todo mundo tinha quarto dentro? 

Minha mãe dormia todo dia lá, eu achava que era porque a mãe dela não gostava dela porque ela me teve. Eu nem sabia o nome da minha avó, só lembro que ela quis bater na minha mãe quando ela me levou pra conhecê-la.  Nunca entendi o porquê, mas também nunca entendi por que no meu registro de nascimento não tinha o nome do meu pai sendo que eu o via todo dia. Não entendia porque eu tinha que pedir e até chorar pra comer Nissin miojo ou bolacha recheada, enquanto meu irmão só abria o pacote, em frente ao televisor assistindo cavaleiros do zodíaco.

Minha mãe me dava presentes e ensinava a tarefa, a outra me forçava a comer e me colocava pro colégio. Era fácil gostar da primeira porque a segunda ficava só com a parte chata...

Crescer foi a parte mais difícil dessa história, mas inevitavelmente aconteceu. O joelho sempre ralado se tornou meu menor problema, porque o coração estara arranhado sempre. Tive que entender meu lugar nesse quartinho que já não suportava minha imensidão de ser....

Revisito esse quartinho sempre que algo vem me avisar de que ele existiu. Da memória ele nunca saiu...Está lá pra lembrar de onde vim e pra onde não fui.




Convencimento

 Não sinto falta de quase nada em vocÊ. Só de quando recebia uma música que tu ouvia no rádio e lembrava de mim. A playlist agora está vazia. Esvaziei todos os locais que ainda tinha uma parte tua. Não foi fácil,mas foi preciso. Ainda assim tem sempre aquele desavisado que, sem querer, manda uma mensagem tua pelas invisíveis linhas daqueles que se perderam. Ainda assim tem sempre uma parte tua, que finjo não ver e varro pras sombras do meu inconsciente enquanto me repito todos os dias que não era pra ser.

Ainda assim sinto falta. Sinto falta do sábado à tarde e da sensação de euforia que eu ficava com tua chegada. vocẽ não vinha por inteiro, havia sempre um pretexto para ir, um olhar de observação em que me avaliavas sem eu perceber, porque os meus olhos eram de entrega, os teus de defesa.

Ainda assim lembro da tua alegria em conhecer algo novo, um lugar, uma palavra, uma música e eu me sentia naquele lugar de importância que tentamos voltar desde que saímos da infância. Lembro da primeira noite, das lágrimas de alegria, dos presentes cujo valor eu supervalorizava, dos planos que pra mim eram reais, e nem percebia no abismo que havia entre eles, eram como duas estradas que não se cruzariam nunca.

Sinto falta da tua admiração estampada no rosto, que deixava claro que nenhuma mulher era mais especial e única que eu, e se desfazia quando lembrava que mesmo assim vocÊ insistia em colocar muitas na nossa história. Sinto falta do teu interesse em tudo que eu falava e o total convencimento  de que não havia ninguém com palavras mais sábias, e eu sentia que toda palavra que me foi calada, estava sendo consentida ali e me cabia usufruir do espaço.

Sinto falta do teu toque delicado, tua carícia arrastando meu cabelo pra detrás da orelha, do beijo que meu corpo não estranhava, que me cabia e encaixava como se sempre só a tua boca eu houvesse beijado. Mas não...tentei beijar outras pessoas, algumas queriam algo mais, mas em nenhuma eu via teu rosto. Ainda bem.

Ainda tem um cheiro teu aqui num objeto que nem sei mais onde está. Escondi para tua lembrança não ficar me assombrando. Mesmo assim  não sinto falta de quase nada em você. Só de quem eu achei que vocÊ era.


14.03.22

mar

 Há muito mistério na simplicidade. Quando criança, a primeira vez que o vi tinha uns 6 anos, imponente, misterioso, grande. Sabia que eu e ele estaríamos misturados, depois houve muitos encontros só nossos. Era sempre na casa de praia da minha mãe durante as férias, depois passou a ser com frequência aos sábados sozinha.

Ele me provocava uma espécie de encanto. Aquelas ondas, aquela abundância, aquela luz à noite que o adormecia enquanto a vida continuava a acontecer. Muito, mas muito depois percebi que havia muito do mar em mim.

Há os que chegam apenas na beira, molham os pés, querem ir até a cintura,mas não conseguem.

Há os que nem se atrevem, olham com temor, talvez temem serem afogados.

Há os que contemplam com ternura, admiração, expressam uma lágrima quando são contemplados com a beleza inerente a ele.

Há os que velejam, adentram, se arriscam a conhecer seus mundos, suas pérolas, pegam sempre algo para si e deixam sempre algo quando vão embora

Há os que se despem, mergulham, enxergam através da água turva remexida da areia, dançam nas ondas, beijam a areia, agradecem a oportunidade de estar.

e eu de amar.

 
Além do Nosso Espelho © 2015 | Criado Por Aline Lima