Adeus

 Eu nunca lidei bem com despedidas. Até já tinha visto várias. Lembro durante  a adolescência que eu assistia a um programa em que as pessoas se despediam de suas pessoas amadas num aeroporto e aquilo sempre me intrigou. Não sei se pela forma sincera, de frente, com lágrimas, com dor.

As suas despedidas sempre me doeram muito, depois de um tempo entendi que não era por sua ida, era por sua forma. Eu ficava guardando o que te dizer, queria te convencer a ficar, mas cada dia era uma véspera de partida.

Você não sabia ficar, só sabia ir. Eu me dispunha toda vez porque acreditava que dessa vez era diferente. Suas palavras tinham tanta convicção.

-você acha que eu falaria isso se eu não quisesse estar com você? 

ESTAR COM VOCÊ, pra mim aquilo era um eco no meu coração. Alguém queria estar comigo. Eu era o bastante para alguém ficar. Eu rezava porque você me fez acreditar ser possível. Eu te agradecia porque eu não acreditava sentir.

Os dias foram se passando com você me ligando de surpresa, mandando mensagem no meu celular todo dia ás 8h pontualmente, eu sorrindo com aquele "bom dia", a gente fazendo planos de ir á praia todo domingo, mas a gente acordava tarde, fazia amor e esquecia que a praia existia, mas prometíamos ir domingo que vem. De tarde, você me chamava pra andar sem rumo, eu sempre tive medo de moto,mas eu achava bom porque assim segurava na tua cintura.

Dessa vez, A despedida foi ficando cada vez mais longe. Eu procurava no céu da boca as melhores palavras pra te contar como minha vida mudou depois que você chegou e ressignificou meu domingo, contando minhas histórias tristes de amores passados que não souberam me amar. A gente inventava línguas, ríamos de coisas que só a gente entendia, brincava de mesóclises, você dizia que eu era ao contrário de tudo que já tinha visto antes. Que meus pés traçavam as linhas do caminho, mas seus pés não quiseram percorrer por ele.

Você dizia que me amava. você gravou minha inicial em uma fonte do amor que visitamos numa cidadezinha que passamos. Não achei aquilo brega, deixei nossos nomes,mas você deixou nossa história. De repente, não te vejo mais, não teve despedida, não teve seu rosto aquecendo minha bochecha, não teve seu adeus. 

Eu tive que inventar em mim uma história diferente pra nós dois.  Uma cena de poucos minutos que doesse menos que a realidade. Talvez essa história fosse a mais incompreendida daquele programa de televisão. 


A gente sempre sabe

Sempre desejei uma vitrola. Quando eu era criança lembro que meu pai havia me dado uma. Colocava meus discos infantis, sentava em frente a ela e sorria feliz com cada nota entonada. A música sempre esteve presente na minha vida. Antes de você, tudo era uma sequência aleatória de notas com uma melodia bonita.

Antes de você eu não entendia nada. Não dava sentido aquelas letras.

Hoje pensei muito em você. Lembrei de todos os seus detalhes, até mesmo das sardas nas bochechas e do peito peludo. Lembrei de como você fechava o olho quando sorria. Meu sofá duro e velho me fez pensar na sua roupa, inspirada em alguma celebridade da moda. Não combinava com você,mas eu te acharia lindo de todas as formas. 

Você foi a minha surpresa mais inesperada, porque quando percebi eu tava olhando seu corpo, admirando seu cabelo baixo e crespo, imaginando como seria seu pau em mim e aquilo me assustou por um instante. Sim, eu também não sabia que eu era bissexual, já você não sei o que achava de mim.

Eu havia me apaixonado por outros meninos sim, mas você não era mais um de muitos. Eu tinha paixonites por uns caras que tocavam bateria, não sei se eu queria ser como eles, se era só admiração. é tão fácil perder o ritmo certo. Eu via a Aline, a Clara e a Juliana sentarem no seu colo na praça.

Queria te tirar dali e te convidava pra ouvir o novo LP de Madonna comigo.Eu sabia que você se amarrava e queria ter também uma vitrola e a gente dançava" I made it through the wilderness Somehow I made it through Didn't know how lost I was Until I found you" . até cair exaustos na cama. Você então tirava a camisa se jogando na cama. Eu respirava perto dela pra gravar teu cheiro. Mas eu sei, você sabe, todo mundo sabe, só finge não saber.

Foi num desses encontros sob pretexto de ouvir música que a gente quase se beijou. Você já tava de namorico com a Clara. Você não sustentava o que sentia, eu não sustentaria apenas amizade. E nesse desencontro você partiu e me deixou ouvindo a última música sozinho. Eu não sei onde você está, eu mal sei onde eu estou.

Vez ou outra você volta pra bagunçar. Demorei meses para entender porque seu retorno sempre mexia tanto comigo. Quando eu repetia pros amigos que sabiam,mas fingiam não saber, que sua ausência não era mais sentida, seu sms chegava e engolia minhas palavras. Na última vez em que foi embora, você disse que eu sempre havia me entregado a você da mesma forma que antes. Percebi que isso não era um elogio, era apenas minha ausência de mim sendo exprimida por você. Você era fuga. 

A forma lenta daquelas palavras na minha cabeça.  Uma ausência tão grande.


Intensa

 Sempre admirei a intensidade. IN.TEn.Si.DA.DE. Eu não tinha noção do que essa palavra significava. E quando você aprende a ler ainda não consegue entender direito o significado das palavras, isso só vem com os anos. Se eu não era bonita nem suficiente pra Marcelo, nem pra Lucas, nem pro João, talvez fosse pra você. De uma hora pra outra minhas histórias de amor eram só enganação.

Ainda lembro de quando você se despediu, não me olhou direito porque com os olhos é que se ignora, mas agradeceu porque eu sempre estive aberta e me entreguei com a mesma intensidade que das outras vezes. Achei que era elogio, no fim era apenas mais um sintoma. Percebi que faltava alguma coisa nessa minha casa revirada, bagunçada e saqueada por você. 

Pensei por muito tempo o que faria. Amaldiçoei minha mãe, gritei comigo mesma, expurguei toda a dor. Quis matar toda a intensidade em mim, mas a verdade menos açucarada é a de que faltava cor, faltava vida, faltava eu mesma. Olhei pro cantinho que tinha em casa, coloquei mais terra, colhi umas flores pela vizinhança e plantei meu jardim. Cada flor tem um pedaço meu que morreu e renasceu; cada folha podada um lado desconhecido, retirado, moldado, arrancado, recuperado; cada folha que cai uma expectativa tolhida.

Fiquei sentada no chão ao lado do jardim. Eu quis logo chorar pra gastar a raiva. Eu odeio o que tenho de mais bonito. Talvez esteja condenada a viver sozinha com minhas flores, mas já não falta mais a mim e é nesse instante que reconheço quem sou.

Tatuagem

 Eu não sei nem quando fantasiei que éramos iguais. Apesar de ter estudado na mesma escola e frequentar o mesmo centro espírita, a gente era tão diferente que parecíamos dois extremos. Meus amigos perceberam logo, disseram pra eu não dar moral e ir com calma. Descobri depois que você não gostava deles, nem foi difícil descobrir, você mesmo me falou. 

Eu não sei se era ciúmes de mim ou inveja porque você não tinha amigos. Eu me equilibrava na corda bamba que você colocou desde muito cedo. "Não gosto disso", "não aceito aquilo" e eu me entortava toda pra poder andar na linha. Na sua linha porque era a linha que eu achava que era a certa a seguir.

Olhava pro relógio, aguardava ansiosa tua hora de chegar. Você era sempre pontual, depois foi atrasando 20 minutos, uma hora, até que sumiu. Seu incômodo era grande e pequeno demais. Um pelo do gato, um favor negado, uma mensagem apagada...e você enfim admitia que a gente era muito diferente, mas eu ainda teimava que não.  

Eu tinha um costume danado de fechar os olhos pra tudo, fechei pro teu beijo molhado e fechei pros teus defeitos escancarados. Eu tinha uma caixinha de ouvir música no quarto, você dizia que ouviu uma música e lembrou de mim. Você dizia que Ana Carolina já tinha passado, eu dizia que Renato Russo já tinha passado pra mim, eu mostrei minha tatuagem com a música dela e você mostrou a sua tatuagem com a música dele. A dele tava certa: minha, só minha e não de quem quiser. Aquela letra tinha tudo a ver com você.

Queria que você tivesse sido meu, mas a gente era muito diferente.

A gente ouvia sempre as mesmas músicas, do mesmo jeito. Um vinho na frente, o corpo colado e a caixinha tocando baixo. Você relava seu corpo em mim, me olhava, encostava o lábio no meu e eu tinha a iniciativa de beijar primeiro.

pena que a gente era muito diferente.

Eu achava tudo tão lindo. Acreditava mais no que ouvia que no que via. Eu tinha esse costume danado de fechar os olhos pra tudo. Eu dizia que você gostava de mim porque você me confundia. Você dizia que um dia a gente estaria na praia, cada um lendo um livro á beira-mar e os meus olhos fechavam sonhando com isso.

Até que um dia meus olhos abriram. Quando vi você era projeção. Não sei quando você começou a desistir, mas eu achei melhor também deixar pra lá. Chorei por dias trancada no quarto, a dor de enxergar é muito maior que a de se estar cega. Ligava a caixinha em casa e imaginava passando a mão em seus cabelos longos. Foi passando o tempo. Percebi que nenhuma linha nos ligava a não ser a minha teimosia. Você não gostava de falar, você não gostava de pessoas, você não gostava de namorar, você não era nada do que me dizia ser. A diferença era muito grande. Enxerguei. 

 "Quando quiser entrar e encontrar o trinco trancado
Saiba que meu coração é um barraco de zinco todo cuidado."  (Vander Lee)

Morte

 Aquilo me caiu como uma bomba. Não sabia o que fazer com aquela informação. Tentei correr, mas não tinha pra onde, até pensei em correr sem rumo, mas o que diriam as pessoas que me vissem? tinha endoidado, por certo.

Achei melhor ficar parada. Peguei um livro. -vou distrair a cabeça. Pensar em outra coisa. As histórias se cruzaram, minha cabeça deu um nó e as letras saltavam da página formando a palavra: culpada!!!

Fechei o livro meio atordoada. A cabeça a mil, pensamentos que não faziam sentido.- Era sintoma, era sintoma, eu repetia pra mim mesma. Peguei o carro, as lágrimas começaram a descer descontroladamente. Parei na primeira padaria perto, pra meu azar tinha um conhecido lá, enxuguei as lágrimas, sorri-lhe educadamente, torcendo que ele não me puxasse assunto.

Comprei a maior quantidade de pães e bolos e salgados que pude. Voltei pra casa e comi vorazmente. Como uma espécie de antropofagia, queria que cada tristeza minha ficasse em cada grama de farinha que ingeri. A dor não passou.

Aquela sensação de que eu não sabia o que fazer com esse vazio, eu não sabia mais quem eu era. Funcionei errado até aqui. Esse funcionamento meio desconhecido, meio atropelado, meio doentio era responsável por tantos fracassos e tanto desamor e tanto ressentimento. Pensei nas pessoas feridas, pensei nas minhas dores arrastadas por meses.

Pensei em desistir de mim. Encontrar nos braços de Deus consolo pra essa dor incansável. Pensei em procurar um colo qualquer. Alguém que tapasse novamente esse buraco que descobri aqui dentro e não sei mais preenchê-lo.

Meu gato me olhou. Como quem entende ou tem pena das lágrimas que me caem incontrolavelmente, ele se achega, mia, se encosta em mim, balança seu rabo e apoia sua cabeça em minha mão. Queria fazer com alguém a mesma coisa que meu gato fez comigo. Queria um acolhimento qualquer, uma esperança que fosse, mesmo que não fosse verdade. Tudo que resta ali era eu.

O vazio continuaria. 

Ignoro todas as pessoas que tentam falar comigo. Não me sinto mal por isso. Queria mudar de endereço, mudar de cidade, mudança que me trouxesse a resposta que procuro. Vou ao banheiro, olho minha cara refletida no espelho redondo, lembrança de um tempo bom. Tempo no qual todo meu vazio era desconhecido. Olho meu rosto e ele é um grande desagrado. As olheiras fundas da noite mal dormida, o lábio seco e o olhar abatido. Passo a mão nele, tento bate-lhe, mas a dor física não ameniza a dor que é por dentro. Caminhar é um grande cansaço. Meu corpo está entregue ao que não sei. Deito,mas não encontro posição que afaste o pensamento: - você é culpada!!!

Penso em rezar, mas pra qual deus? Que inferno de deus tão sádico era esse que iria querer que seu filho sofresse tanto? Desisto da ideia. Não é espiritual. Coloco uma música, um flashback internacional pra relembrar de quando esse vazio era desconhecido. Choro mais ainda. Onde foi que me perdi? ou será que agora que me achei?

Minha última alternativa era me dopar, mas a realidade não mudaria. A realidade é um teste maior. E não havia ninguém pra segurar meu corpo, caso eu me destruísse de verdade. Eu fazia o que sabia, o que ainda era muito pouco. Esvaziar-se parece uma punição.

Penso nas coisas que eu deveria pensar, mas não quero verbalizar. Cada sílaba carrega uma chicotada na alma e eu sou o capataz. Um atestado de culpa, uma lembrança feliz, agora o silêncio do meu quarto e a solidão parece castigo. Minha raiva foi adormecendo.

Enfim consigo dormir. No outro dia acordo. Tudo claro como um lembrete de que na mais alta escuridão ainda pode entrar luz. Consigo, então, compreender que minha irritação tenha sido algo maravilhoso. Era preciso morrer. Morrer é um presente divino. Na vida morremos repetidas vezes, o problema está em não renascer.  Coloco agora a vírgula mais importante da minha vida, a que vai virar todo o rumo da história, mas isso pede fôlego puxado. Vir a saber do que eu não sabia sobre mim mesma é um desafio,mas é só através disso que podemos nos reposicionar, nos reconstruir, nos refazer.  Imprimi folhas de possibilidades, todas que me levavam a mim mesma como caminho.


07.06.2021


Bicicleta de Biscoitos

 Não lembro ao certo quando o vi pela primeira vez. Possivelmente ainda era Bebê ou não. Dizem que filho tem que cuidar dos pais na velhice, eu nunca acreditei nisso. Filho tem que crescer e voar....A gente não pede para nascer e já nasce com uma culpa enorme e não é apenas a cristã, é a de ser um peso na vida dos pais. Eles nunca na vida dormirão sem uma preocupação, sem saber aonde você tá, se comeu, com quem anda, se estuda, o que vai vestir....é um paraíso de preocupações. Há quem diga que também traz felicidades e até concordo que deva haver esses momentos, mas o que é a vida senão momentos de dúvidas, sofrimento, inseguranças, dores, na maior parte do tempo?

Quando eu nasci, vi logo o rosto da minha mãe, ela me enfeitava todo domingo para me levar á missa. Cumprimentava, vez ou outra, um homem vestido sempre de branco parado na porta. Ele me olhava, perguntava-a se tava me cuidando direito, quantos anos eu tava e ela me puxava pelo braço para voltarmos pra casa.

- Esse pateta sem futuro não pergunta nem se você tá precisando de leite!

Todo domingo a mesma coisa. Nos outros dias era só eu e ela. Quando eu me recusava a comer o almoço ou a xingava com raiva, ela dizia que eu puxei a ele. Aos poucos, fui entendendo que aquele homem de branco era meu pai.

Na minha cabeça de oito, pai e pateta eram sinônimos. Era tudo que eu sabia sobre paternidade. O universo masculino me era tão estranho quando ás questões de matemática que nunca dominei. Minha mãe nunca deixou faltar nada em casa, mas eu sabia que ela não tinha sobrando e o que meu pai não dava fazia falta; talvez como criança já compreendia isso, era fastiosa para comer ou era apenas desculpa para ir brincar de pega-pega na rua.

Depois de anos, aquele homem começou a visitar minha casa e sempre trazia uma caixa de biscoitos. Tinha com recheio, de leite, wafer, de todo tipo. Eu ficava no muro olhando e esperando a bicicleta de biscoitos chegar. Esses biscoitos não eram acompanhados de palavras, mas eu sabia que de certa forma era um gesto de pai. Anos depois, essa visita cessou. Até hoje não sei o porquê. Penso em todas as crianças que também não tiveram pai, cresceram desprotegidas, tentando achar um amparo. Desse jeito cresci e apesar disso consigo enxergar uma beleza infinita. Na falta.

Tive raiva já, hoje não. A minha vida continuou sem ele. Ainda o vejo andando na mesma bicicleta pelo bairro onde moro, mas já não sou mais a menina que espera pelo biscoito, sou a mulher que ele ajudou a nascer.


30.05.2021

 
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