Bicicleta de Biscoitos

 Não lembro ao certo quando o vi pela primeira vez. Possivelmente ainda era Bebê ou não. Dizem que filho tem que cuidar dos pais na velhice, eu nunca acreditei nisso. Filho tem que crescer e voar....A gente não pede para nascer e já nasce com uma culpa enorme e não é apenas a cristã, é a de ser um peso na vida dos pais. Eles nunca na vida dormirão sem uma preocupação, sem saber aonde você tá, se comeu, com quem anda, se estuda, o que vai vestir....é um paraíso de preocupações. Há quem diga que também traz felicidades e até concordo que deva haver esses momentos, mas o que é a vida senão momentos de dúvidas, sofrimento, inseguranças, dores, na maior parte do tempo?

Quando eu nasci, vi logo o rosto da minha mãe, ela me enfeitava todo domingo para me levar á missa. Cumprimentava, vez ou outra, um homem vestido sempre de branco parado na porta. Ele me olhava, perguntava-a se tava me cuidando direito, quantos anos eu tava e ela me puxava pelo braço para voltarmos pra casa.

- Esse pateta sem futuro não pergunta nem se você tá precisando de leite!

Todo domingo a mesma coisa. Nos outros dias era só eu e ela. Quando eu me recusava a comer o almoço ou a xingava com raiva, ela dizia que eu puxei a ele. Aos poucos, fui entendendo que aquele homem de branco era meu pai.

Na minha cabeça de oito, pai e pateta eram sinônimos. Era tudo que eu sabia sobre paternidade. O universo masculino me era tão estranho quando ás questões de matemática que nunca dominei. Minha mãe nunca deixou faltar nada em casa, mas eu sabia que ela não tinha sobrando e o que meu pai não dava fazia falta; talvez como criança já compreendia isso, era fastiosa para comer ou era apenas desculpa para ir brincar de pega-pega na rua.

Depois de anos, aquele homem começou a visitar minha casa e sempre trazia uma caixa de biscoitos. Tinha com recheio, de leite, wafer, de todo tipo. Eu ficava no muro olhando e esperando a bicicleta de biscoitos chegar. Esses biscoitos não eram acompanhados de palavras, mas eu sabia que de certa forma era um gesto de pai. Anos depois, essa visita cessou. Até hoje não sei o porquê. Penso em todas as crianças que também não tiveram pai, cresceram desprotegidas, tentando achar um amparo. Desse jeito cresci e apesar disso consigo enxergar uma beleza infinita. Na falta.

Tive raiva já, hoje não. A minha vida continuou sem ele. Ainda o vejo andando na mesma bicicleta pelo bairro onde moro, mas já não sou mais a menina que espera pelo biscoito, sou a mulher que ele ajudou a nascer.


30.05.2021

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