Mulher #2


 
Que mulher que

sou

me pergunto agora

que não sabe ser

que voltou a ser

que tenta aprender


Que mulher que

sou

quando todos riram

e meu espelho não soube responder

Que mulher que 

sou

quando vejo ela

e tento entender


Que mulher que

sou 

misturada

marcada

silenciada

desejada


Que mulher que sou

Sou mulher pra você?

Mulher #1

Nasci prematura

de tamanho e afeto

fui enchendo aos poucos

nas pernas

na cintura

nos braços

nos abraços

me refiz

e cresci

procurando respostas

achei as mais difíceis.


Palavra

 A palavra é como rio

ora enche 

ora seca

ora se vai

ora me pega

Por entre minhas mãos 

ela escorre

por entre meus olhos 

ela se esconde

e em vão tento entendê-la.




"Há quem use a literatura, há quem viva a literatura."

Labaredinhas

 Eu preciso falar de quando meu tempo era todo teu?  Olho o relógio, são 19h de uma sexta á noite. O horário dos apaixonados. Esperava tua chegada toda sexta por essas horas. O final de semana seria todo nosso. Comecei a me acostumar com essa nossa rotina.

O tempo não costuma gostar de rotinas. Eu observo minha jiboia em cima da geladeira e quando você chegou ela não tinha nem cinco folhas ainda. As promessas, antes de se perder no tempo, se perdem nas palavras. 

Fechei a porta para nos proteger dos olhares dos outros. O cheiro do seu cabelo provocava meu piercing no nariz e era melhor que qualquer cheiro em qualquer bar, ao menos pra mim. A gente festejava a vida em plena segunda-feira á noite, ignorando tudo lá fora.

Desde o primeiro sorriso que te dei, entre cheiros etílicos, eu sabia que eu me enrolaria nos panos de nossa história, eu só não sabia que seria tão difícil assim me desvincilhar. As tardes passavam sempre devagar deitados na rede, enquanto você massageava meu pé, me fazendo me sentir uma rainha em alta soberania.

Eu não costumava exigir muito então isso já me era tão suficiente que eu dizia obrigada a qualquer gesto seu. De repente, algo mudou e tudo isso passou a ser tão pouco. Eu queria tua presença nem que fosse de vez em quando, para me aquecer de madrugada ou tua ligação em qualquer horário do dia. Eu queria saber do teu dia porque estar contigo só era pouco pro meu desejo. 

De repente, meus desejos eram cobranças. E tu,já meio cansado, me respondia com duas palavras atravessadas: preciso dormir e eu ficava com uma ausência. Uma ausência tão grande. Os dias continuaram e eu insistia em fazer parte da tua vida, já tu, fazias malabarismos para fazer parte da minha. O sentimento de, pela primeira vez, enxergar o que não via. Exigir do outro o que ele não pode me dar é minha via crucis.

Peguei os diários que eu escrevia. Contei quantas vezes teu nome se repetiu. Naquele momento aprendi mais uma lição. Não estava certa disso, por isso ponderei. Rasguei as folhas e fiz uma fogueira. As chamas não foram tão altas assim, mas dentro de mim uma brasa se acendeu.

Sai de casa andando, sendo assistida pelas crianças brincando de pega pega na rua, pelos carros, pelos vizinhos, comecei a correr. Eu pensei no que seria. Uma voz que me pedia. E então compreendi outra coisa: Se apegar ao seu eu destruído é muito mais comum que pensam. 

Voltei para casa e vi quinze chamadas perdidas. Todas suas. Desliguei o celular e  joguei na fogueira junto com as folhas. As pequenas labaredinhas cumpriram seu papel. Eu já não estava sozinha, estava comigo.

23.07.2021






Desilusão

 Eu estava sentada na calçada. Você passava segurando seu cachorro filhotinho e sorria pra mim. Ali era o início de uma história que achei que contaria aos nossos netos. Mas a vida tem caminhos desiguais. Não duramos nem uma década. Já anuncio logo o fim, porque a minha vida toda foi de expectativas.

Do sorriso até o pedido de namoro demorou um tempo. Você ficava sempre desconfiado,não sabia exatamente se era só simpatia, todo mundo com baixa autoestima sente isso. Se sentir especial e desejado parece inalcançável. Mas você tinha coragem. Eu achei que tinha. Depois disso,você me chamou pra comer cachorro quente na praça e nem temia que todos da cidade veriam e falariam que a filha de Zé Correia, mal falada porque foi pega pulando a janela da casa do Seu Pedro da padaria, estaria fazendo mais uma vítima.

sempre foi duro ser mulher, mas ser mulher em cidade pequena parece que é muito mais.

você tinha uma franja grande que cortava seu rosto e deixava só um olho aparecendo. Um olho puxado que a gente não sabia bem quando tava aberto, porque fechava ao sorrir. Você vivia assim de rir de minhas piadas, de minhas histórias de quando passei um tempo no sítio da minha avó e colocava carrapicho na cama para assustar a velha, ou quando ria da catinga dos porcos no quintal com quem eu brincava até cansar ou quando comia tanto pequi que me dava dor de barriga.

Você era meu maior fã. E como todo fã espera muito do ídolo.

Eu não tinha muito a te oferecer, mas tinha minha alegria. Você passou a me levar aos passeios com seu cachorro. Perdia-o de vista porque não desgrudava os olhos dos meus. Eu acho que gostava mais da atenção que você me dava que de você.

Não era muito de falar, mas você era meu melhor ouvinte. Passávamos as tardes na minha casa assistindo. Eu apontava pra televisão de tubo e dizia que queria ser igual aquela atriz, a do cabelo liso de luzes. Você ria e dizia que eu era mais bonita.

Todos da cidade olhavam, falavam. Diziam que eu queria dar o golpe da barriga. Você não era rico,mas seu pai trabalhava no banco e isso já era maior que a renda da minha família inteira. Mas eu não me importava com o que você tinha. Nossos olhos se entendiam.

Você me deu um presente no meu aniversário. Um salto alto igual ao da atriz da televisão. Coloquei um batom vermelho, o salto e você me levou pra tomar sorvete á noite na praça.  Eu estava tão bonita. Um menino me empurrou, me chamou de prostituta, e você ficou calado. Tomei o sorvete sem falar uma palavra. Não entendi seu silêncio.

Achei que você não se importaria com o que diziam de mim, mas você esperava mais. E eu não podia ser livre, não podia ser mulher. Você passou a me dizer pra evitar o batom vermelho porque chama atenção, depois um par do sapato sumiu misteriosamente, depois começou a criticar minhas roupas sempre curtas, reclamava de minhas histórias repetidas.

Seu sorriso mudo deu lugar a um tom sério e uma porção de regras. Você não era mais meu fã, queria ser meu dono.

16.07.21





Ato Falho



Eu quero me despedir porque meu coração ama. Falamos sobre sexo, eu e minhas amigas e a saudade ficou na minha boca. Mas não era qualquer saudade, era a dela.

Minha família não via com bons olhos porque minha vida era diferente da maioria das mulheres,  mas para eles isso era pior que ser prostituta. Abrir as pernas para os homens é natural, mesmo que seja antes dos 18.

Eu ainda tinha 20 e sempre tinha um tio pra perguntar pelos namoradinhos em toda festa. Eu não dizia nada e estendia o braço pra pegar o arroz refogado da ceia. As pessoas falavam, vigiavam e isso chegou ao ouvido de painho. Sai de casa porque não tinha outra opção.

Eu a observava de longe, escolhi esperar, mas há coisas que sonhamos tanto que a realidade não parece dar conta. Mas eu queria ir um pouco mais fundo e consegui um encontro com aquela mulher de 30 anos. Era uma distância de mais de 10 anos de vidas, mas uma distância minima entre os corpos. Eu tinha medo de não ser suficiente, mas eu tinha vontade.

Nossos corpos colidiram e se fundiram. Era nosso acordo, viver o agora. Nossas mentes já não podiam fazer o mesmo. Ela  durou o tempo necessário para tornar todas as histórias de amor irrelevantes. 

O abraço dela era uma toca pra onde eu poderia fugir. Entreguei-me aquele desejo. Seu corpo quente em cima do meu, seu beijo na minha boca, lento, molhado, sentido. Seu cheiro é de mulher, sua boca de ameixa sendo chupada por meus lábios e suas palavras nos meus ouvidos faziam meus músculos se contraírem.

Não conseguiria sair dali sem isso. Ao menos não queria. Porque me segurei por meses pra não bater na porta dela e sentir seu cheiro único, ouvir suas mágoas e reclamações porque eu não soube amar sua alma, mas amei seu corpo. Amei como nunca amei nenhum outro.

Tirei sua roupa lenta pra gravar aquelas curvas na minha memória. Eu não me importei na hora com quem ela estava, naquele momento éramos uma da outra. O toque riscava fogo, sua pele macia deslizava tão bem entre meus dedos.

Pensei em devorá-la de pronto, tão forte era meu desejo,mas ela me pediu pra não ter pressa. Peguei seus seios e os segurei com uma mão, enquanto minha boca beijava seu pescoço. Sua carne era quente, havia líquidos por toda parte, joguei os travesseiros pra fora da cama, a virei de frente pra mim e a fudi como nunca havia desejado tanto antes.

Seu gemido sendo sussurrado em meu ouvido aumentava meu desejo. Coloquei-a de costas pra mim, era bom guiar, e a fudi por trás enquanto seus braços alcançavam a parede e seu cabelo tocava meu rosto. Ela vestia sempre uma lingerie diferente, como se eu fosse achar ruim de ver sempre a mesma, quando sem calcinha, sua bunda realçava suas curvas, sua cintura, seus seios, sua buceta cabia exatamente na minha boca. Seu clitóris estava maior. Gozava. Apagamos a luz, porque o tempo infelizmente não para, e virava sempre pro lado esquerdo porque tinha mania, passava seu corpo encostado ao meu e como quem não se saciava, vinha pra cima de mim provar do meu sexo enquanto me beijava á boca.

 Procurei a água que ficava sempre ao lado da cama, encontrei água em seu corpo. Amanheceu indefesa, meus olhos sorrindo pro amor. Começamos tudo outra vez e nos deixamos cair, cansadas. Não lembro quanto tempo durou aquele momento, mas ficou na minha cabeça pra sempre. Eu tinha me feito mulher, não por um pau, mas por uma mulher .

Os dias continuaram, eu queria voltar a ser quem eu era quando nos encontramos naquela mesa de bar pra dividir uma cerveja enquanto eu sentia que ela iria embora, se não na hora,mas em meses. Depois me despedi porque ainda a amo e isso me escapuliu da boca.



Adeus

 Eu nunca lidei bem com despedidas. Até já tinha visto várias. Lembro durante  a adolescência que eu assistia a um programa em que as pessoas se despediam de suas pessoas amadas num aeroporto e aquilo sempre me intrigou. Não sei se pela forma sincera, de frente, com lágrimas, com dor.

As suas despedidas sempre me doeram muito, depois de um tempo entendi que não era por sua ida, era por sua forma. Eu ficava guardando o que te dizer, queria te convencer a ficar, mas cada dia era uma véspera de partida.

Você não sabia ficar, só sabia ir. Eu me dispunha toda vez porque acreditava que dessa vez era diferente. Suas palavras tinham tanta convicção.

-você acha que eu falaria isso se eu não quisesse estar com você? 

ESTAR COM VOCÊ, pra mim aquilo era um eco no meu coração. Alguém queria estar comigo. Eu era o bastante para alguém ficar. Eu rezava porque você me fez acreditar ser possível. Eu te agradecia porque eu não acreditava sentir.

Os dias foram se passando com você me ligando de surpresa, mandando mensagem no meu celular todo dia ás 8h pontualmente, eu sorrindo com aquele "bom dia", a gente fazendo planos de ir á praia todo domingo, mas a gente acordava tarde, fazia amor e esquecia que a praia existia, mas prometíamos ir domingo que vem. De tarde, você me chamava pra andar sem rumo, eu sempre tive medo de moto,mas eu achava bom porque assim segurava na tua cintura.

Dessa vez, A despedida foi ficando cada vez mais longe. Eu procurava no céu da boca as melhores palavras pra te contar como minha vida mudou depois que você chegou e ressignificou meu domingo, contando minhas histórias tristes de amores passados que não souberam me amar. A gente inventava línguas, ríamos de coisas que só a gente entendia, brincava de mesóclises, você dizia que eu era ao contrário de tudo que já tinha visto antes. Que meus pés traçavam as linhas do caminho, mas seus pés não quiseram percorrer por ele.

Você dizia que me amava. você gravou minha inicial em uma fonte do amor que visitamos numa cidadezinha que passamos. Não achei aquilo brega, deixei nossos nomes,mas você deixou nossa história. De repente, não te vejo mais, não teve despedida, não teve seu rosto aquecendo minha bochecha, não teve seu adeus. 

Eu tive que inventar em mim uma história diferente pra nós dois.  Uma cena de poucos minutos que doesse menos que a realidade. Talvez essa história fosse a mais incompreendida daquele programa de televisão. 


A gente sempre sabe

Sempre desejei uma vitrola. Quando eu era criança lembro que meu pai havia me dado uma. Colocava meus discos infantis, sentava em frente a ela e sorria feliz com cada nota entonada. A música sempre esteve presente na minha vida. Antes de você, tudo era uma sequência aleatória de notas com uma melodia bonita.

Antes de você eu não entendia nada. Não dava sentido aquelas letras.

Hoje pensei muito em você. Lembrei de todos os seus detalhes, até mesmo das sardas nas bochechas e do peito peludo. Lembrei de como você fechava o olho quando sorria. Meu sofá duro e velho me fez pensar na sua roupa, inspirada em alguma celebridade da moda. Não combinava com você,mas eu te acharia lindo de todas as formas. 

Você foi a minha surpresa mais inesperada, porque quando percebi eu tava olhando seu corpo, admirando seu cabelo baixo e crespo, imaginando como seria seu pau em mim e aquilo me assustou por um instante. Sim, eu também não sabia que eu era bissexual, já você não sei o que achava de mim.

Eu havia me apaixonado por outros meninos sim, mas você não era mais um de muitos. Eu tinha paixonites por uns caras que tocavam bateria, não sei se eu queria ser como eles, se era só admiração. é tão fácil perder o ritmo certo. Eu via a Aline, a Clara e a Juliana sentarem no seu colo na praça.

Queria te tirar dali e te convidava pra ouvir o novo LP de Madonna comigo.Eu sabia que você se amarrava e queria ter também uma vitrola e a gente dançava" I made it through the wilderness Somehow I made it through Didn't know how lost I was Until I found you" . até cair exaustos na cama. Você então tirava a camisa se jogando na cama. Eu respirava perto dela pra gravar teu cheiro. Mas eu sei, você sabe, todo mundo sabe, só finge não saber.

Foi num desses encontros sob pretexto de ouvir música que a gente quase se beijou. Você já tava de namorico com a Clara. Você não sustentava o que sentia, eu não sustentaria apenas amizade. E nesse desencontro você partiu e me deixou ouvindo a última música sozinho. Eu não sei onde você está, eu mal sei onde eu estou.

Vez ou outra você volta pra bagunçar. Demorei meses para entender porque seu retorno sempre mexia tanto comigo. Quando eu repetia pros amigos que sabiam,mas fingiam não saber, que sua ausência não era mais sentida, seu sms chegava e engolia minhas palavras. Na última vez em que foi embora, você disse que eu sempre havia me entregado a você da mesma forma que antes. Percebi que isso não era um elogio, era apenas minha ausência de mim sendo exprimida por você. Você era fuga. 

A forma lenta daquelas palavras na minha cabeça.  Uma ausência tão grande.


Intensa

 Sempre admirei a intensidade. IN.TEn.Si.DA.DE. Eu não tinha noção do que essa palavra significava. E quando você aprende a ler ainda não consegue entender direito o significado das palavras, isso só vem com os anos. Se eu não era bonita nem suficiente pra Marcelo, nem pra Lucas, nem pro João, talvez fosse pra você. De uma hora pra outra minhas histórias de amor eram só enganação.

Ainda lembro de quando você se despediu, não me olhou direito porque com os olhos é que se ignora, mas agradeceu porque eu sempre estive aberta e me entreguei com a mesma intensidade que das outras vezes. Achei que era elogio, no fim era apenas mais um sintoma. Percebi que faltava alguma coisa nessa minha casa revirada, bagunçada e saqueada por você. 

Pensei por muito tempo o que faria. Amaldiçoei minha mãe, gritei comigo mesma, expurguei toda a dor. Quis matar toda a intensidade em mim, mas a verdade menos açucarada é a de que faltava cor, faltava vida, faltava eu mesma. Olhei pro cantinho que tinha em casa, coloquei mais terra, colhi umas flores pela vizinhança e plantei meu jardim. Cada flor tem um pedaço meu que morreu e renasceu; cada folha podada um lado desconhecido, retirado, moldado, arrancado, recuperado; cada folha que cai uma expectativa tolhida.

Fiquei sentada no chão ao lado do jardim. Eu quis logo chorar pra gastar a raiva. Eu odeio o que tenho de mais bonito. Talvez esteja condenada a viver sozinha com minhas flores, mas já não falta mais a mim e é nesse instante que reconheço quem sou.

Tatuagem

 Eu não sei nem quando fantasiei que éramos iguais. Apesar de ter estudado na mesma escola e frequentar o mesmo centro espírita, a gente era tão diferente que parecíamos dois extremos. Meus amigos perceberam logo, disseram pra eu não dar moral e ir com calma. Descobri depois que você não gostava deles, nem foi difícil descobrir, você mesmo me falou. 

Eu não sei se era ciúmes de mim ou inveja porque você não tinha amigos. Eu me equilibrava na corda bamba que você colocou desde muito cedo. "Não gosto disso", "não aceito aquilo" e eu me entortava toda pra poder andar na linha. Na sua linha porque era a linha que eu achava que era a certa a seguir.

Olhava pro relógio, aguardava ansiosa tua hora de chegar. Você era sempre pontual, depois foi atrasando 20 minutos, uma hora, até que sumiu. Seu incômodo era grande e pequeno demais. Um pelo do gato, um favor negado, uma mensagem apagada...e você enfim admitia que a gente era muito diferente, mas eu ainda teimava que não.  

Eu tinha um costume danado de fechar os olhos pra tudo, fechei pro teu beijo molhado e fechei pros teus defeitos escancarados. Eu tinha uma caixinha de ouvir música no quarto, você dizia que ouviu uma música e lembrou de mim. Você dizia que Ana Carolina já tinha passado, eu dizia que Renato Russo já tinha passado pra mim, eu mostrei minha tatuagem com a música dela e você mostrou a sua tatuagem com a música dele. A dele tava certa: minha, só minha e não de quem quiser. Aquela letra tinha tudo a ver com você.

Queria que você tivesse sido meu, mas a gente era muito diferente.

A gente ouvia sempre as mesmas músicas, do mesmo jeito. Um vinho na frente, o corpo colado e a caixinha tocando baixo. Você relava seu corpo em mim, me olhava, encostava o lábio no meu e eu tinha a iniciativa de beijar primeiro.

pena que a gente era muito diferente.

Eu achava tudo tão lindo. Acreditava mais no que ouvia que no que via. Eu tinha esse costume danado de fechar os olhos pra tudo. Eu dizia que você gostava de mim porque você me confundia. Você dizia que um dia a gente estaria na praia, cada um lendo um livro á beira-mar e os meus olhos fechavam sonhando com isso.

Até que um dia meus olhos abriram. Quando vi você era projeção. Não sei quando você começou a desistir, mas eu achei melhor também deixar pra lá. Chorei por dias trancada no quarto, a dor de enxergar é muito maior que a de se estar cega. Ligava a caixinha em casa e imaginava passando a mão em seus cabelos longos. Foi passando o tempo. Percebi que nenhuma linha nos ligava a não ser a minha teimosia. Você não gostava de falar, você não gostava de pessoas, você não gostava de namorar, você não era nada do que me dizia ser. A diferença era muito grande. Enxerguei. 

 "Quando quiser entrar e encontrar o trinco trancado
Saiba que meu coração é um barraco de zinco todo cuidado."  (Vander Lee)

Morte

 Aquilo me caiu como uma bomba. Não sabia o que fazer com aquela informação. Tentei correr, mas não tinha pra onde, até pensei em correr sem rumo, mas o que diriam as pessoas que me vissem? tinha endoidado, por certo.

Achei melhor ficar parada. Peguei um livro. -vou distrair a cabeça. Pensar em outra coisa. As histórias se cruzaram, minha cabeça deu um nó e as letras saltavam da página formando a palavra: culpada!!!

Fechei o livro meio atordoada. A cabeça a mil, pensamentos que não faziam sentido.- Era sintoma, era sintoma, eu repetia pra mim mesma. Peguei o carro, as lágrimas começaram a descer descontroladamente. Parei na primeira padaria perto, pra meu azar tinha um conhecido lá, enxuguei as lágrimas, sorri-lhe educadamente, torcendo que ele não me puxasse assunto.

Comprei a maior quantidade de pães e bolos e salgados que pude. Voltei pra casa e comi vorazmente. Como uma espécie de antropofagia, queria que cada tristeza minha ficasse em cada grama de farinha que ingeri. A dor não passou.

Aquela sensação de que eu não sabia o que fazer com esse vazio, eu não sabia mais quem eu era. Funcionei errado até aqui. Esse funcionamento meio desconhecido, meio atropelado, meio doentio era responsável por tantos fracassos e tanto desamor e tanto ressentimento. Pensei nas pessoas feridas, pensei nas minhas dores arrastadas por meses.

Pensei em desistir de mim. Encontrar nos braços de Deus consolo pra essa dor incansável. Pensei em procurar um colo qualquer. Alguém que tapasse novamente esse buraco que descobri aqui dentro e não sei mais preenchê-lo.

Meu gato me olhou. Como quem entende ou tem pena das lágrimas que me caem incontrolavelmente, ele se achega, mia, se encosta em mim, balança seu rabo e apoia sua cabeça em minha mão. Queria fazer com alguém a mesma coisa que meu gato fez comigo. Queria um acolhimento qualquer, uma esperança que fosse, mesmo que não fosse verdade. Tudo que resta ali era eu.

O vazio continuaria. 

Ignoro todas as pessoas que tentam falar comigo. Não me sinto mal por isso. Queria mudar de endereço, mudar de cidade, mudança que me trouxesse a resposta que procuro. Vou ao banheiro, olho minha cara refletida no espelho redondo, lembrança de um tempo bom. Tempo no qual todo meu vazio era desconhecido. Olho meu rosto e ele é um grande desagrado. As olheiras fundas da noite mal dormida, o lábio seco e o olhar abatido. Passo a mão nele, tento bate-lhe, mas a dor física não ameniza a dor que é por dentro. Caminhar é um grande cansaço. Meu corpo está entregue ao que não sei. Deito,mas não encontro posição que afaste o pensamento: - você é culpada!!!

Penso em rezar, mas pra qual deus? Que inferno de deus tão sádico era esse que iria querer que seu filho sofresse tanto? Desisto da ideia. Não é espiritual. Coloco uma música, um flashback internacional pra relembrar de quando esse vazio era desconhecido. Choro mais ainda. Onde foi que me perdi? ou será que agora que me achei?

Minha última alternativa era me dopar, mas a realidade não mudaria. A realidade é um teste maior. E não havia ninguém pra segurar meu corpo, caso eu me destruísse de verdade. Eu fazia o que sabia, o que ainda era muito pouco. Esvaziar-se parece uma punição.

Penso nas coisas que eu deveria pensar, mas não quero verbalizar. Cada sílaba carrega uma chicotada na alma e eu sou o capataz. Um atestado de culpa, uma lembrança feliz, agora o silêncio do meu quarto e a solidão parece castigo. Minha raiva foi adormecendo.

Enfim consigo dormir. No outro dia acordo. Tudo claro como um lembrete de que na mais alta escuridão ainda pode entrar luz. Consigo, então, compreender que minha irritação tenha sido algo maravilhoso. Era preciso morrer. Morrer é um presente divino. Na vida morremos repetidas vezes, o problema está em não renascer.  Coloco agora a vírgula mais importante da minha vida, a que vai virar todo o rumo da história, mas isso pede fôlego puxado. Vir a saber do que eu não sabia sobre mim mesma é um desafio,mas é só através disso que podemos nos reposicionar, nos reconstruir, nos refazer.  Imprimi folhas de possibilidades, todas que me levavam a mim mesma como caminho.


07.06.2021


Bicicleta de Biscoitos

 Não lembro ao certo quando o vi pela primeira vez. Possivelmente ainda era Bebê ou não. Dizem que filho tem que cuidar dos pais na velhice, eu nunca acreditei nisso. Filho tem que crescer e voar....A gente não pede para nascer e já nasce com uma culpa enorme e não é apenas a cristã, é a de ser um peso na vida dos pais. Eles nunca na vida dormirão sem uma preocupação, sem saber aonde você tá, se comeu, com quem anda, se estuda, o que vai vestir....é um paraíso de preocupações. Há quem diga que também traz felicidades e até concordo que deva haver esses momentos, mas o que é a vida senão momentos de dúvidas, sofrimento, inseguranças, dores, na maior parte do tempo?

Quando eu nasci, vi logo o rosto da minha mãe, ela me enfeitava todo domingo para me levar á missa. Cumprimentava, vez ou outra, um homem vestido sempre de branco parado na porta. Ele me olhava, perguntava-a se tava me cuidando direito, quantos anos eu tava e ela me puxava pelo braço para voltarmos pra casa.

- Esse pateta sem futuro não pergunta nem se você tá precisando de leite!

Todo domingo a mesma coisa. Nos outros dias era só eu e ela. Quando eu me recusava a comer o almoço ou a xingava com raiva, ela dizia que eu puxei a ele. Aos poucos, fui entendendo que aquele homem de branco era meu pai.

Na minha cabeça de oito, pai e pateta eram sinônimos. Era tudo que eu sabia sobre paternidade. O universo masculino me era tão estranho quando ás questões de matemática que nunca dominei. Minha mãe nunca deixou faltar nada em casa, mas eu sabia que ela não tinha sobrando e o que meu pai não dava fazia falta; talvez como criança já compreendia isso, era fastiosa para comer ou era apenas desculpa para ir brincar de pega-pega na rua.

Depois de anos, aquele homem começou a visitar minha casa e sempre trazia uma caixa de biscoitos. Tinha com recheio, de leite, wafer, de todo tipo. Eu ficava no muro olhando e esperando a bicicleta de biscoitos chegar. Esses biscoitos não eram acompanhados de palavras, mas eu sabia que de certa forma era um gesto de pai. Anos depois, essa visita cessou. Até hoje não sei o porquê. Penso em todas as crianças que também não tiveram pai, cresceram desprotegidas, tentando achar um amparo. Desse jeito cresci e apesar disso consigo enxergar uma beleza infinita. Na falta.

Tive raiva já, hoje não. A minha vida continuou sem ele. Ainda o vejo andando na mesma bicicleta pelo bairro onde moro, mas já não sou mais a menina que espera pelo biscoito, sou a mulher que ele ajudou a nascer.


30.05.2021

mudanças

 10 anos depois decidi reescrever esse texto....pois mudei muito!quem não???


Taurina.Com todos os defeitos e qualidade de um tipico taurino.Embora hoje eu saiba que o signo não te define. Menos ciumenta, insegura ainda infelizmente. Amiga,Atenciosa e romântica. Gosto de falar e de ouvir.Deveria ouvir mais que falar,mas meu forte ímpeto de viver não me permite. Gosto de admirar as coisas.a chuva.o pôr do sol.Adoro ir á padaria de tarde.Adoro comprar cd e livro. (hoje o spotify não deixa mais ter esse prazer, mas me reapaixonei pelos discos) Amo ler;é mais que amor,é uma necessidade. Amo dar aula;aprendi a amar o que faço.Eu quero ainda muitas coisas,mas tenho consciência de que devo lutar por isso. Valorizo as pessoas que estão comigo. (Gratidão é uma coisa que tenho aprendido a ter na minha vida.) já fui muito ajudada pelas pessoas,e muito injustiçada também. Adoro jogar Quiz,adoro jogo de conhecimento,porque adoro me superar. Não sou católica,( já fui evangélica e agora nem me considero mais espírita,) acho que não tenho religião definida.Ás vezes acho que sou agnóstica: Acredito que Deus existe.

Acho que me pareço com Aline:Graciosa,atraente,me sinto sensual quando estou segura de mim,o problema é que isso quase nunca acontece. Faladeira,(legal,)curiosa.sensível. (Quase) Qualquer coisa me machuca.Tudo me atrai. Amo música.Amo cinema.Sou fã da Julia Roberts. Amo conversar com gente inteligente.Detesto pessoas fofoqueiras e invejosas.Quero ser professora desde os 10 anos de idade. (e até morrer), (organizada) sempre leio manual de instruções,bulas de remédio.Tenho medo de ficar doente.Minha pior dor foi uma de ouvido, (mas dores emocionais já tive várias, aguentei baixinho. Ficaram entre Deus e eu.) Minha diva maior: Ana Carolina.Sou fã desde os 13 anos dela. Já não sou mais o que eu era.Mudei muito em pouco tempo,embora conserve traços antigos em mim mesma. Ainda quero fazer ioga e meditar frequentemente. 

Gosto de massas,lasanhas,pizzas.tudo que é comida. (Não) Detesto yakissoba, abacaxi, mas sim jaca. Adoro comer.Odeio me sentir gorda. Gosto de ouvir música baixa.Mas adoro música eletrônica na boate.Amo um barzinho com MPB. Bebo cerveja,mas prefiro vinho. Sou vascaína roxa. Quero ter uma lareira,um carro bom e uma casa aconchegante.  (Este último conquistei, a lareira...bem...faz calor onde moro), Sonho em conhecer o mundo inteiro. já pensei em pegar uma mochila e sair por esse mundão a fora. (até agora foram 5 países e alguns estados brasileiros) Quero viver sempre com uma pessoa só, tão apaixonada como estou agora. (gatilho/ Não) Pude conhecer o amor verdadeiro.  (Amo minha família,apesar de todos os problemas. Tenho duas mães e três pais. Dois irmãos e uma (duas) sobrinhas; e se não for de sangue,tenho uma família muito maior.

Não sou de guardar mágoas de ninguém.Não sou de odiar. Prefiro a distância quando não me faz bem. Adoro rir de bobagens. Ironia e sarcasmo me fazem rir.Meu programa favorito é o CQC. (hoje é ler enquanto tomo meu café olhando meu quintal) Gosto de novelas.Acompanho todas que eu gosto. Adoro cantar,pena que não sei. Pegar o violão de me deixa feliz. Queria aprender tocar piano. (ainda persisto no violão)

Falo sozinha desde criança.Adoro a lua e (agora) o sol também. Amo internet. (Não) Tenho medo do escuro. Já perdoei pessoas,já pedi muito perdão,já machuquei pessoas amadas,já fui machucada e decepcionada muitas vezes. Nunca perdi a fé nas pessoas. Já amei sem medo.Já tive medo de amar. Já gritei e pulei de tanta felicidade.

Me considero uma pessoa feliz,mas ás vezes me sinto triste. Queria ser muito inteligente. Queria entender de tudo um pouco.Adoro minha liberdade. Sai de casa aos 17 anos. Já morei com 64 pessoas e foi o meu maior desafio. Adoro praia.Adoro mar. O mar me acalma,me faz bem. Ouvir Lara Fabian me deixa serena. Tenho uma TPM fortíssima. Eu amo meus amigos. Ás vezes fico distante,mas nunca esqueço as amizades realmente verdadeiras e especiais pra mim.

Aqui dariam mais muitas linhas falando de tanta transformação interna que já me ocorreu nesses tempos, mas vou seguir caminhando, com coragem, acreditando que o tempo de todas as coisas só se conhece no coração....daqui a 10 anos eu volto pra terceira edição (rs)

Aline Lima
Abril de 2021

Sabonetes

 Não faço ideia de como isso se deu, na verdade faço sim, mas há coisas que preferimos varrer para um lugar pouco frequentado em nós. O que eu tinha era a ilusão de que dessa vez iria durar. Quando conheci Clara, foi rápido,mas o suficiente para eu ficar congelada, era a primeira vez que eu beijava uma mulher, então eu me sentia mal, era errado.

Lembrava de minhas memórias de adolescente e o que eu ligava á palavra lésbica. E não era nada positivo. Mas aconteceu e foi diferente de tudo que já havia experimentado antes. Clara me olhava, queria ficar comigo, até enfrentou a mãe, enquanto segurava minha mão, com cuidado como quem segura uma estrela do mar. Dizia que ficaríamos juntas para sempre. O tempo passou, fomos felizes, comendo pipoca enquanto assistia Mad man ou dançando é o tchan enquanto fazíamos faxina de madrugada.

Ela foi embora um tempo depois, não deve ter suportado, acompanhado que eu queria ir mais fundo na história, na minha história porque uma hora a gente cansa, se não de tédio,mas de morte. 

Quis frequentar todos os lugares de mim, havia uma distância entre mim e ela, e não era de um metro e meio entre a cama e o sofá, era de anos de consciência. A única coisa que ficou de nós foi o sabonete no banheiro. Comecei a analisá-lo muito tempo depois, não sei se por saudade, costume, distração ou sintoma.

Depois os dias continuaram, conheci Giovana, achei que ela nunca iria embora. Suas palavras eram fortes, sua vontade era fraca. Começamos sabendo muito o que queria, era muita convicção em tão pouco tempo, mas eu já estava sem escolha. Percebi quando demorava minha atenção sob seu corpo, os cabelos castanhos e ondulados enrolados na toalha, um perfume que ficava grudado no travesseiro.

O meu problema foi acreditar demais nas suas palavras, em suas histórias turvas, não queria desconstruir a ilusão que eu tinha criado e isso me importava tanto. Acreditei até que ela tinha um banheiro favorito na minha casa. Mas o fim estava rápido e ele foi tão de repente que um ano depois, quando ela voltou, ainda achei que não houvesse tido fim. De novo, a única coisa que ficou foi o sabonete gasto no banheiro. 

Quando Cris chegou, eu nem percebi direito. Ela foi entrando na minha casa, no meu quarto, na minha cama, na minha vida. os dias eram confortáveis, com direito a sentar na calçada pra olhar a vida passar, mas um furacão passou na rua e arrastou nossas cadeiras e agora a situação já não era mais confortável. Sua partida era urgente e forçada por mim.

Não me dei conta de quando ela levou o sabonete, mas ele estava ali também, naquele banheiro que eu mal entrava, a não ser quando era pra fugir enquanto ela corria para me puxar pela cintura e me beijar com a boca cheia de pasta de dente enquanto ria e se balançava.

Fiquei sentada no chão do banheiro nem sei quantas horas. Naquele momento me esqueci das pessoas. Olhava os sabonetes e desejava apenas que ele limpasse todo o amor que eu era capaz de sentir, todo o meu desejo ardia.

Aquele sentimento de enxergar a mim e toda minha ingenuidade e toda minha vida incompreendida e ignorar toda a necessidade de que eu precisava ficar só. Aqueles sabonetes todos juntos; um rosa redondo, outro branco já mais gasto, outro amarelo. Formei com eles um só, amassei como quem abraça, doeram as mãos, os líquidos do meu corpo saíram de todas as formas.

A vida delas continuava sem mim,mas a minha parou por um instante. Tudo virou água de esgoto. Eu queria morrer sozinha no chão do banheiro porque não suportava o abandono. Eu vomitei de febre, chorei, fiquei magra, e então acreditei na verdade mais dura e menos açucarada que carrego: eu não dou conta de mim e o que me resta agora é respirar meu próprio oxigênio. 


25.05.2021




Um livro e um Chá

"o céu mentia chuva". Acho que era outono. Você vestia sempre uma camisa larga e um short que deixava as pernas á mostra. Essas pernas eram colocadas sob as minhas na cadeira branca que sentávamos para ler após o almoço. Você como sol espalhava luz em todas as direções, refrescando meu rosto, puxando meu sorriso, me fazendo desviar do livro para olhar teu rosto concentrada em Clarice.

você tinha cheiro de flor de maracujá. cheiro de maresia de tarde. Qualquer palavra ali atrapalharia o momento. Como que cronometrado pelo relógio do amor, a gente parava a leitura e você me puxava pro quarto pra me guiar. Queria ser guia, mas era guiada. e eu não achava ruim. Era bom me desarmar e pela primeira vez ser aprendiz, era pega por seu conhecimento preparado, aprendido meio que sem regras, mas diferente de tudo que eu sabia. E isso me era estranho.

Tive medo pela primeira vez em muito tempo. Medo que aquilo não fosse real, medo que alguém me impedisse, medo que não fosse verdade.

Que bonita era sua empolgação quando falava. Eu sempre falei muito mas não achava ruim em me calar e te ouvir falar sobre sua infância em Pocinhos ou sua família desajeitada. Ou dos seus planos pro seu futuro que eram sempre tantos e não pareciam se encaixar.

Eu me calava.

cada um traça seu destino. o melhor que podemos fazer muitas vezes é assistir e torcer pelo bem. E como eu precisava torcer porque você seguia um caminho torto, que percebi muito depois que te seguir era destruição. Eu te seguia me dispondo. Mas eu sabia que você não tinha razão. E tudo bem. a gente nem sempre tem. Mas todos temos fé. E você tinha muita, de todo tipo, seja com a astrologia, o candomblé ou com o espiritismo. Você era do zodíaco, eu sazonal.

Quem é teu santo. O que é a vida. Era a profundeza nos nossos dias. Parecia que eram dias contados. Eu sentia isso. Assim como a música que tocava enquanto preparava o café. Era "tudo somente sexo e amizade" como cantava Maria Bethânia. Desejei que fosse mesmo. Havia um pacto que nunca fizemos de que café era pela manhã,mas de tarde era chá. Achei também que haveria pacto de outras coisas boas.

Você quis ficar,mas não soube. Eu te expulsei porque era preciso. Você quis gravar meu nome e gravou mais algumas coisas. O último dia foi ficando mais cada vez mais vago. Aqui dentro não há rancor, aqui dentro há lamento.

por mim

por você

por nós.

Não sou dada á astrologia, nem aos santos. nem mais aos espíritos, mas só contigo entendi a grandiosidade do que sou.


17.05.2021







No ouvido

 Alguns gestos são tão sublimes. Eu sempre trabalhei em não perceber o mínimo.

Pra me impressionar precisava ser grande, ser muito, ser nítido. é preciso mais que sensibilidade para ver os pequenos gestos, eles estão escondidos em um café com uma flor, em um doce no meio da tarde, em uma mensagem de madrugada ou um favor quando você não pede.

Eu teimava até que eles não existiam. Minha missão era teimar. teimar de todas as formas possíveis que poderia haver amor em algo pequeno, porque amor pra mim já imprimia o grande. Acho que nasci com as respostas na mão e nunca as percebi.

Talvez fosse minha cabeça de nove que pensasse assim. Porque eu não via meu pai trazer flores á minha mãe, mas via ele brigar porque ela não havia feito a carne cozida pro jantar. Acho que era por isso que eu via mainha chorando no quarto sozinha.

As ideias vão se formando em nossa cabeça e a gente não sabe como. só quando cresce que a gente passa a entender cada pedacinho de nossas ideias e até mesmo o que a gente nem pensa passa a ser entendível.

Eu sempre esperava com ansiedade o final do dia. mainha chegaria do trabalho. Ainda lembro quando ela me mandou pegar algo no carro, mas era desculpa pra eu encontrar o presente que eu tanto desejava: um bambolê com cheiro de chiclete.

Não lembro a cara que mainha fez quando viu minha alegria, chorei tanto de emoção que bati a cabeça na porta. Ficou todo mundo da casa me olhando, só  minha irmã com olhar de reprovação, como ela sempre fazia com qualquer coisa que eu ganhasse.

mas nem todas as lembranças são ruins.  Hoje vejo que mainha fazia gestos simples pra me ver feliz, era um tempo dedicado a mim o dela escolher o que me daria e de saber o objeto que eu tanto queria. Foi patins, foi vestido rodado vermelho, videogame, foi uma máquina de costura de brinquedo mas que era de verdade.

Era mais do que o que ela me dava em conversas, carinho ou qualquer outra forma de atenção.

Muitos anos depois, quando eu já havia percebido isso, cheguei na casa de mainha e me queixei de dor de ouvido. Ela foi até o quarto, pegou o cotonete, colocou uma pomada e me mandou colocar no ouvido dizendo que era muito boa e sararia.

Entendi o que é um gesto sublime. Entendi o que é o amor em ação.



COLHEITA

 O amor cabe!

e cabe direito, sem sobrar ou faltar.

só com dignidade a gente compreende quando foi amor. E aprende que aquela vontade toda, o esforço demasiado, era só um grande medo de não ser. Até que um dia a corda rompe. E você olha suas mãos doloridas de segurá-las, em farrapos, tanto quanto a corda do que não era.

E também não há falta de dignidade em querer, e se dispor, ás vezes, a ver onde a corda vai. Há os que precisam passar por isto, mas passam por outras coisas. A vida é uma linda passagem pelo próprio destino.

Ela fica, a vida,

Fica conosco.

Nos revela.

Depois de nossas pontes, encontramos a nós mesmas do outro lado. De mãos refeitas! Que souberam lidar com cordas partidas, com dignidade. Que souberam abençoar o que não nos pertencem.

Mãos refeitas, jamais serão mãos vazias.

Depois do que parece,

Depois do que o mundo pensa,

Depois até do que você pensa,

você encontra aquilo de que não será preciso agarrar com as mãos.

Merecer alguma coisa, não é achar que merece. é merecer. Só pela dignidade merecemos colher as flores do que plantamos, e mãos curadas podem semear melhor.


Flávia Wenceslau

(Mini crônica) Mesa

Acho bonito quem coloca a mesa. Seja pro café ou pro jantar, parece que colocar a mesa pode ser comparado á reciprocidade. é como dizer: "vem, traz teu amor que já to preparada."

E você vai cortando seus pedaços, sem deixar-se despedaçar, vai fritando o ovo, cortando o pão, amassando a massa, adoçando o líquido.... no início pode não saber a dose, pecar pelo excesso, exceder na falta, depois tudo vai ficando previsível, não menos encantador. Depois de quantos gramas o outro gosta, não perde a graça, torna-se mais excitante. 

Eu já sabia o que você fazia primeiro: o gole no café antes de cortar o queijo. o jeito amassado de pegar a tapioca, o bolo repetido 3 vezes. Eu percebia o sorriso de agradecimento ao final. Não sabia se agradecias pelo pão ou por mim. "Nem só de pão viverá o homem" e eu queria te alimentar de todo o amor que havia em mim.

Você ter deixado a mesa não foi a pior parte de sua partida. Deixar meu café esfriando era previsível. O pior foi habitar dentro de si e ser incapaz de alimentar ao outro. Não senti pena de mim, mas há pessoas que sentem tanto...

Mas E agora? 

"como vai preparar meu leite quente antes de dormir?"


31.03.2021

Aline Lima

 "...se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo."


Conceição Evaristo

O que é gostar de alguém?

Será que algum dia já gostei de alguém? A frase saiu de uma sessão de psicoterapia e ficou se revirando dentro de mim por dias. Como se sabe que se gosta de alguém...Fujamos aqui das definições românticas e piegas, esconda-se borboletas e suspenda o frio na barriga.

Esse mistério, que nem chamo de amor, persiste. Porque talvez ,quando seja amor não haja dúvida. ás vezes, eu saia de mim para pensar melhor, depois descobri que eu acabava não pensando. Acreditava que dar muito faria alguém ficar,descobri que era apenas mais um sintoma.

Eu não to com saudade de quem partiu. Eu to com saudade de mim e da vontade que eu tenho de me definhar e depois chamar isso de amor. Mas a maioria das pessoas também se destroem.

Quando conheci Luana achava que que ela vivia intensamente. Eu sempre admirei as pessoas que viviam como se o mundo fosse acabar amanhã. Pessoas incendiárias!

Pessoas que pegam fogo em plena segunda-feira á tarde, no meio do expediente em uma cidade grande. Ela era assim. Duas pessoas que se uniram para se destruírem. 

Nos fundimos numa gritaria escandalosa. Dançávamos uma dança perigosa em meio a uma tempestade. Luana era uma tempestade e eu um campo pronto. 

Até que um dia, deixei Luana ir. mesmo contra sua vontade. Era ela ou eu. Foi melhor assim. A tempestade pode afogar muitas vezes. Ainda ouço falar dela por amigos próximos. Olho para o mar e posso imaginar qual o último pensamento que ela teve antes de se atirar, querendo chegar até o barco que pairava no meio do mar.

Fico pensando como é difícil suportar nossas dores, se esvaziar parece mesmo uma punição. Talvez gostar de alguém seja gostar de lembrar. Mas eu não quero definir. Eu quero viver e de peito aberto.


15.03.2021


Na vitrola

 Uma das melhores lembranças da minha infância era ficar olhando a vitrola. Aquela agulha fininha que encantadamente fazia sair som ao tocar no disco me fascinava. Por aqueles tempos não existia mp3, nem serviço de streaming, cd era raridade e artigo de luxo, vitrola era antiquada. 

Algumas casas ainda mantinham essa tradição. Parecia uma torre de lego. uma parte tocava fita cassete, na outra rádio, na outra cd e em cima, majestoso, o maior de todos: o disco. Sobre os discos ,a criançada desconhecia. Não sabiam o que fazer com eles, não sabiam o que eles eram capazes de fazer. Não sabem que ele não acaba quando termina, que tem dois lados, que sua vida é frágil e sua morte se dá de forma fácil apenas com um arranhão.

Eu sempre fui apaixonada por rádio, até hoje ouço, mas a vitrola parece aqueles amores que você conhece, se apaixona, a vida toma caminhos diferentes e vocês se perdem, até se reencontrarem numa padaria do bairro distante ou numa avenida movimentada no crepúsculo.

Minhas histórias de amor também envolvem a agulha. 

Eu pegava todos os discos que tinha em casa, ouvia um por um, olhava com atenção as capas, decorava as letras, engolia as sílabas, limpava com pano úmido, balançava o corpo ou chorava sem motivo algum, eu nem tinha idade para chorar por alguém, mas o choro era sincero, perguntava aos mais velhos quem eram esses artistas e curiosamente de que eles haviam morrido. Queria saber mais desses desconhecidos tão próximos.

A gente não percebe muito bem quando o tempo vira. Talvez isso seja habilidade que só adquirimos quando estamos já bem mais velhos. Eu nunca sentia o tempo passar, nem quando ouvia a vitrola tocar. Eu apenas reparava no agora.

Não lembro bem como a vitrola foi embora lá de casa. Talvez tenha sido trocada por um objeto mais útil. Talvez tenha sido jogada no lixo como nossa sociedade aprendeu que se faz com as coisas velhas. Elas se perdem em meio ao tempo, torna-se obsoleto, vira basculho, precisa abrir espaço para o novo. 



Memórias

Quando eu era criança frequentemente ficava doente. Minha mãe sempre me levava ao médico, ás vezes se queixava, "essa menina só vive com dor de garganta", "de novo", e ia me arrastando até o postinho de saúde mais próximo.

Pegava a ficha, eu sentava na cadeira, balançando os pezinhos que  ainda não alcançavam o chão, acho  até que foi aí que aprendi a esperar. Minha mãe fazia amizades com outras mulheres que também acompanhavam suas crianças, enquanto eu ficava quieta, sem me queixar do incômodo da dor nem da impaciência de minha mãe.

o médico chamava meu nome, minha mãe me puxava pelo braço e entrava junto. "Doutor, ela tá sentindo dor de garganta, tosse e teve febre a noite toda." Era esquisito ver o monólogo da minha mãe sobre coisas que eu estava sentindo. Quando o médico queria saber mais, eu esboçava uma resposta, mas minha mãe tomava a frente e eu me sentia aliviada por não tem que fazer nenhum esforço.

Apesar de tudo era bom ficar doente. As atenções se voltavam pra mim. E e eu podia comer biscoito a qualquer hora junto com algum suco industrializado, podia assistir desenho animado a manhã toda e ganhava atenção quando era hora de tomar o remédio. 

Quando eu cresci, adoeci mais uma vez, só que minha mãe não estava para me levar ao posto de saúde e falar tudo por mim. Talvez a parte mais dolorosa de crescer seja essa: tomar sua própria voz!!!Quando ficamos mais velhos tudo que queremos é nos calar, calar nossas dores,varrer nossos incômodos, sarar nossas feridas e que alguém resolva tudo por nós.

Aline Lima



(Mini-crônica) Que tal 15 minutos de silêncio?

Minha ex namorada certa vez me fez esse convite!

A princípio eu estranhei e achei coisa de doido!

Mas depois pensei: por que não?!!

Ela era dessas que desliga a tv, corta a música, “por que você fala tão alto?”, “por que tanto barulho?,” quer um fone de ouvido?”

Enfim chegou o momento! Não fizemos 15 mas fizemos 10 e enquanto isso o único barulho era o da minha cabeça!

Eu pensava em coisas do tipo: será q eu devia cortar o cabelo?

E a outra voz me dizia: nãooo!!!

Confesso que gostei!

Apesar de não ser uma pessoa barulhenta e odiar volumes altos,

Tenho dificuldade em ouvir o silêncio!!!

Acho que vai virar uma prática minha porque inclusive agora estou em absoluto silêncio!

Não estou morta,estou na minha e realmente pensando de novo sobre cortar o cabelo!

março/2021

Figuras

Você pra mim é paradoxo

desses cheios de contradições que quebram a cabeça;

Você pra mim é metáfora,

daquelas que não se chega nunca a uma definição exata;

Você é hipérbole misturada com personificação,

amo todo o exagero em ti, 

e amo mais cada persona que inventas a cada vez que voltas,

Você pra mim é metonímia

te quero não só uma parte, mas quero o todo,

até ser sua anáfora

e me repetir por todos os dias de sua vida.

01.03.2021 



Angústia

 Ela sufoca

martiriza

te rouba

e te devolve em pedaços

te atira do abismo amarrada

amordaçada

perdida

o peito dói

rasga

te maltrata.

te faz um nada.


 
Além do Nosso Espelho © 2015 | Criado Por Aline Lima